segunda-feira, 13 de abril de 2009

Ordem de choque

Olhei pro espelho constrangido naquele momento. Os olhos daquele agora adulto me fitavam e exigiam uma resposta. Minha réplica fugia... Justo naquele momento ela se omitiu. Parecia confusa ou quem sabe desesperançosa. Procurei me dispersar. Busquei a fuga em coisas menos sérias. Mas a dor em meu peito não deixava. Ela latejava com raiva e sem pedir licença. Parecia se divertir da minha tristeza... Procurei buscar na mente o que tinha levado àquilo. E de repente me achei na Glória em uma pensão barata. Almoço por cinco reais num lugar quente e freqüentado por moscas, mas era o que podia pagar naquele momento, além de um chamariz: as pessoas. Composta em sua maioria por setores populares eles davam o tom para um lindo quadro, enquanto meu olhar dava os devidos retoques naquele ambiente putrefato, porém terno. Fiz o meu pedido ao garçom obeso que mastigava um palito e trajava uma camiseta de candidato político. Sentei-me ao lado de um gari. A mesa era composta apenas por trabalhadores. Formais e informais. Todos devoravam seus pratos com avidez, enquanto assistiam o noticiário esportivo na TV. O gari utilizava uma colher e a segurava de um jeito desajeitado, enquanto os outros dispensavam o uso da faca. Dividíamos a pimenta e não nos comunicávamos verbalmente apenas apontando os molhos da mesa acompanhado de um pedido com reticências. Um ventilador barulhento refrescava o ambiente. Após terminar a refeição fui agraciado por um café. Bebi vagarosamente e saí... Caminhava pela Rua da Glória a passos lentos, enquanto observava as pessoas e casas comerciais. Bares e moradores de rua... Uma sintonia urbana que, infelizmente, me acostumei. Meu caminho é interrompido com aquilo que me deixaria consternado pelo resto dos dias. Uma mulher aos prantos ao ver seu filho sendo levado. Já a havia visto algumas vezes pela Glória vendendo doces com sua criança nos braços. Andava descalça, era negra, cabelo sujo e roupa encardida. Aparentava ter entre trinta e cinco e quarenta anos, enquanto seu filho beirava os quatro anos. Sempre sorridente, apesar das adversidades, era comum vê-la utilizando bordões com o intuito de vender o seu produto. Naquele sorriso que lhe era comum agora só restava o choro. Ela e outros moradores estavam sendo expulsos de um cortiço abandonado que tinham ocupado. Uma viatura policial e um caminhão da Comlurb se encarregavam de fazer o trabalho burocrático prático, enquanto alguns populares curiosos acompanhavam. O chamado “choque de ordem” era aplicado com o aval da insensibilidade totalmente transposta nas gargalhadas dos policiais. Eu vítima da História e passivo a ela assistia a tudo. Os móveis da senhora eram jogados na carcaça do caminhão. Ela não se atinha a isso, apenas esbravejava e socava inutilmente aqueles que levaram o seu filho. As lágrimas dela em sincronia com as minhas desciam sem piedade. Senti falta de ar por uns instantes. Questionei o meu papel de figurante naquela cena indigna. Desde daquele dia passei a sentir vergonha de mim. Minhas noites de sono passaram a ser raras. As canções mais tristes. O tempo mais lento. Tenho vergonha do espelho.